
Os enormes e belos anúncios luminosos das lojas, até mesmo nas pequenas cidades, não permitem que os jovens de hoje imaginem como eram as fachadas desses estabelecimentos, com os anúncios produzidos à base de tinta e pincel. Os para-choques dos caminhões e as lameiras também eram pintados por verdadeiros artistas, muitos deles anônimos. Aqui em Feira, no entanto, alguns conseguiram notoriedade.
Do final da década de 1940 aos anos 80, Feira de Santana viveu um incomum crescimento. As lojas no setor comercial, no centro da cidade, multiplicavam-se rapidamente, e era incessante o fluxo de caminhões, não só por ser o município o maior entroncamento rodoviário do Norte/Nordeste, como pelo fato de a cidade reunir as mais importantes oficinas mecânicas dessa parte do país. Mecânicos, pintores, eletricistas, capoteiros, enfim, verdadeiros talentos em todas essas áreas e outras do segmento automotivo.
Essa corrida em direção à hoje metropolitana Princesa do Sertão gerava oportunidade de trabalho para muitos profissionais já capacitados, bem como para outros, sem atividade definida e sem prática, mas necessitados de ganhar dinheiro. Em uma época em que não havia anúncios luminosos, o neon, nem o marketing da atualidade. As fachadas de lojas registravam seus nomes em letreiros nas paredes, placas de madeira ou faixas de tecido. Esse modal também era utilizado para anunciar inaugurações e eventos festivos.
Com a mesma necessidade de criar detalhes específicos em seus veículos, motoristas recorriam a esses profissionais, na verdade alguns até mais amadores, para pintar o para-choque e as lameiras dos carros, geralmente com frases espirituosas e maliciosas, algumas até mesmo comprometedoras e merecedoras de proibição. Pela qualidade do trabalho e conceito, China (Sebastião José Ferreira) era requisitado majoritariamente, mas havia outros muito bons, dentre os quais Dodô e Maxixe, lembra o cordelista Jurivaldo Alves, que também exerceu a profissão por pouco tempo, que ele estima em torno de um ano, ou um pouco mais.
Jurivaldo desistiu definitivamente de exercer a atividade em consequência de dois episódios: “Pintei a marca de uma instituição oficial no alto da caixa d’água, mas devido ao sol e à posição — tive que trabalhar deitado de barriga para baixo — terminei com o peito assado. Outra vez fui colocar a faixa de uma loja que seria inaugurada, atravessando a Avenida Senhor dos Passos; o arame da faixa encostou na rede elétrica, resultando num curto-circuito e aquele choque!”. Alguns pintores de placas eram verdadeiros artistas, produzindo letras de estilo como o gótico, o sombreado, desenhos e paisagens com perfeição. China (Sebastião José Ferreira) tornou-se famoso pelos trabalhos que executava com traços perfeitos e muita criatividade, tanto que não lhe faltava serviço. Casado com dona Romenilse Ferreira, China deixou oito filhos, netos e bisnetos, mas nenhum seguiu a sua profissão. Os bisnetos Emerson e Micaele têm outras atividades, mas são talentosos desenhistas.
Eram comuns as propagandas em faixas de tecido e placas de madeira e metal, com a pintura do nome dos estabelecimentos comerciais. Para anunciar seus filmes, o extinto Cine Teatro Íris usava um cartaz (placa de madeira) que ficava apoiado em um poste da rede elétrica, em frente à Igreja Senhor dos Passos. Ali era anunciado o filme, bem como o elenco (principais atores, dias e horários de exibição). Mas havia também o trabalho propiciado pelos donos de caminhões, que exigiam perfeita qualidade nos desenhos e nas letras, principalmente nas lameiras. Lembra Jurivaldo que, em consequência de algumas frases maldosas em caminhões, houve muitas confusões. Uma dessas frases numa lameira, fazendo alusão à “cabeça de baiano”, resultou na morte de um motorista pernambucano na cidade de Vitória da Conquista. Havia também outras românticas e engraçadas, como: “Nas curvas do teu corpo, capotei meu coração”, “Na terra em que os brutos também amam, mulher não tem coração” (referência à música Os Brutos Também Amam) e “Mulher e parafuso comigo é no aperto”.
A evolução tecnológica demandou o desaparecimento de muitas profissões liberais e, assim, já não se vê com frequência o letrista (que abria letreiros) e o pintor, uma vez que nem sempre um só fazia as duas coisas. Independentemente de China, que liderava essa atividade na cidade, Maxixe e Dodô também marcaram com o seu trabalho há cinco ou seis décadas atrás. Maxixe, vindo de Salvador, era um verdadeiro artista plástico. Em segundos produzia um desenho pornográfico em um lenço ou no papel laminado de uma carteira de cigarros e ganhava bom dinheiro nas boates da cidade. Nas placas e fachadas de lojas, fazia desenho livre — não usava esboço, como era comum. Dodô, letrista de primeira, teve morte estranha: “morreu afogado em um lugar seco”, ressalta Jurivaldo.
“Dodô tinha epilepsia e bebia muito. Um dia ele caiu na esquina da Rua Artur de Assis com a Rua São José (Minadouro) e ficou com o rosto para baixo. Chovia e a água que vinha da Rua Fróes da Mota ficou acumulada no local devido ao corpo dele. Resultado: Dodô morreu ali, morreu afogado em um lugar naturalmente seco!”, relata. Com o fim dessa era, praticamente desapareceram, ou são raros, os letristas e pintores de fachadas de prédios e lojas, facilmente identificáveis pela tradicional maleta que conduziam e que, aberta, parecia uma pequena prateleira com tintas, lixas e pincéis.
Por Zadir Marques Porto


Foto: Divulgação – Arquivo ZMP




