
A vida segue o ritmo do tempo; assim, os sons que enchiam de melancolia e romance as noites de Feira de Santana, entre as décadas de 1940/1970, cederam lugar a outras manifestações rítmicas na televisão, redes sociais e paredões. Paradoxo que se pode conceber como normal, pelas mudanças da sociedade. Mas vale lembrar retalhos de um tempo em que a Lua era soberana nas noites da Princesa, ao som do violão e de belas vozes.
“Vai longe o tempo em que, se a noite era de prata, violões em serenata enchiam os céus de canções…” E vai muito longe mesmo esse tempo em que, sem televisão, internet, redes sociais, influenciadores e celular, a beleza da Lua inspirava canções. A verdade é que o satélite da Terra continua banhando as noites com sua beleza, só que já não existe plateia nas janelas, nos bancos das praças, nas ruas. Tampouco há enamorados. O amor ainda existe, mas, assim como o luar, é visto de forma diferente. Então, vale lembrar a Feira de Santana pudica, respeitosa, que se recolhia cedo para dormir — exceção apenas de rapazes apaixonados que contavam suas dores nas seis cordas de um violão.
As serestas, independentemente de representarem a melhor expressão de amor, eram também o palco natural para excelentes cantores que, não tendo como exibir seu talento em clubes ou emissoras de rádio, faziam da rua o palco, o cenário, tendo como inigualável iluminador o satélite da Terra. Assim, entre as décadas de 1940/1970, surgiram na Cidade Princesa excelentes cantores, quando o estilo romanesco das canções e dos intérpretes apaixonados predominava, antecedendo aos ritmos mais fortes e intensos que foram aparecendo sob a influência de astros como Elvis Presley, Pat Boone, Neil Sedaka, Little Richard, Jerry Lee Lewis e grupos como The Beatles. Bons valores como Leo Ramos (Leopoldo Ramos), Audízio Carvalho, David Silva, Ivanito Rocha, Raimundo Lopes, Antônio Moreira, Geraldo Borges, Silton Brandão, Gerson Guimarães, Raimundo Gonçalves, Donga Carvalho, Morenito, Dinho Oliveira, Antônio Batista, Antônio Caribé (Tuita) e Dourival Oliveira formaram uma geração de rara qualidade.
O trio Os Divinais — Geraldo (Valter Pitangueira), Dida e Missinho —, com afinação similar à do Trio Irakitan, que era o melhor do Brasil no gênero, fazia enorme sucesso nas noites feirenses, de tal modo que ganhou programa semanal na Rádio Cultura. Perfídia, Aqueles Olhos Verdes, La Barca, Maria Helena, Recuerdos de Ti e outros boleros de enorme sucesso na época (e preferidos até hoje) eram interpretados magistralmente pelos Divinais. O quarteto Irapajós também alcançava êxito com Valtinho, João Lins, Zete e Nelito, este dono de um timbre vocal privilegiado. Todavia, o maior destaque das noites feirenses foi Milton Brito que, no Rio de Janeiro, nos anos iniciais da década de 1960, fez enorme sucesso.
Voz grave, potente, dicção perfeita, compositor e poeta, o seresteiro Milton Brito foi contratado pela RCA, uma das maiores gravadoras do país; teve disco lançado, foi apresentador de programa de auditório na Televisão Continental e fez longas temporadas nas principais casas de show da Cidade Maravilhosa, como Le Rond Point, Restaurante A Cabana, Boate Plaza e Bar Michel. Brito chegou a ter como reserva o famoso Altemar Dutra, mas deixou a música pelo Direito. Hoje, em Feira de Santana, dedica-se mais à literatura. E como a música não se traduz apenas por belas vozes, excelentes instrumentistas também fizeram parte dessa fase inigualável das noites feirenses, como Mirinho (violão, guitarra, bandolim), Dinho (bandolim, cavaquinho), Clarival, Carlito, Zinho, Lili, Manuel, Miranda e Amadeu (violão). De uma geração mais recente de seresteiros, o médico Nantes Bellas Vieira (Dr. Bibi), Amado, Orlando Ribeiro Santos, Gersinho, Ivo, Mariacy, Gelivar Sampaio, Antônio Araújo e ainda o grupo Chorinho Entre Amigos, com João Dias (Didi do Violão), Laerte Gaúcho, Carlos, Felipe, Douglas e Luciano.
Embora esses nomes sejam citados, muitos outros emolduraram as noites da Princesa do Sertão com suas vozes e instrumentos e igualmente merecem a memória da saudade de um tempo cujas linhas foram apagadas pelo próprio tempo, para que outras mensagens surgissem, de forma bem diferente — talvez tentando dizer, ou repetir, na contemporaneidade do século XXI, tudo aquilo que foi pronunciado no século passado, naturalmente com outra codificação.
Por Zadir Marques Porto



