
Ex-integrantes do ‘Relere’, de remição de pena pela leitura, vencem concurso de redação nacional e ingressam em universidades públicas
Mesmo convivendo diariamente com os limites impostos pela prisão, o educando G.S.A, de 76 anos, encontrou na leitura e nas oficinas educativas promovidas pelo ‘Projeto Relere’, do Ministério Público do Estado da Bahia, uma oportunidade de desenvolver seu potencial. Ele conquistou em setembro o primeiro lugar nacional no concurso de redação da Defensoria Pública da União (DPU), voltado a pessoas privadas de liberdade. O tema da edição deste ano foi: “Os Desafios da Saúde dos Povos Indígenas no Brasil”.
Hoje em liberdade, como resultado da remição de pena, G.S.A foi um dos participantes do ‘Projeto Relere’, ação do MPBA desenvolvida no Conjunto Penal de Itabuna entre dezembro de 2020 a março de 2025, e que deixou um legado de integração das práticas socioeducativas com as modalidades de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e ensino superior. A iniciativa promoveu leitura, rodas de conversa e oficinas educativas com internos, como forma de reduzir a pena e, ao mesmo tempo, incentivar a transformação pessoal e social. O concurso de redação da DPU foi voltado a pessoas privadas de liberdade, jovens em cumprimento de medidas socioeducativas e estudantes da EJA, inclusive internos que frequentam escolas públicas ou técnicas. A proposta é dar espaço àqueles que, muitas vezes, não têm voz, mostrando que refletir, escrever e debater também são direitos garantidos.
Para o ex-interno, a conquista representa muito mais do que um prêmio. Segundo ele, vencer o concurso nacional é a prova de que o sistema prisional pode ser um espaço de aprendizado e mudança. “O presídio tem fama de coisa ruim para o ser humano, e para mim não é verdade, porque o que eu aprendi aqui foi muito valioso e a prova está aqui”, declarou. De acordo com G.S.A, os módulos oferecidos pelo projeto, especialmente o que tratou sobre democracia, foram fundamentais para uma nova visão de mundo e uma mudança interna. Além disso, ele cita momentos que marcaram ele no processo de aprendizado. “Tudo foi importante para mim, mas o mais importante foi o tratamento dos servidores do MPBA com os internos, porque não tinha discriminação, não tinha diferença, todo mundo era igual”, destacou.
Universitários
Durante o desenvolvimento do projeto, vários alunos foram aprovados no Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), Enem e Sisu. Atualmente, existem 10 ex-estudantes do ‘Relere matriculados na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), a primeira universidade no estado a estabelecer, em 2022, cotas para pessoas privadas de liberdade e egressos do sistema prisional, influenciando outras universidades no país. Os alunos do Conjunto Penal de Itabuna se destacaram com aprovações tanto pelo sistema geral quanto pelo sistema de cotas.
A promotora de Justiça Cleide Ramos, idealizadora do projeto, reforça o propósito da iniciativa. “Os círculos restaurativos contribuíram decisivamente para uma ambiência respeitosa e empática, que reverberou dentro e fora dos muros da prisão, mostrando que existe outro caminho para o enfrentamento ao crime organizado. Quando as pessoas internalizam os princípios restaurativos e técnicas de comunicação não violenta, aliados aos conteúdos sobre as causas dos conflitos e violência, conseguem ressignificar suas trajetórias de vida. A leitura de obras literárias e sociológicas desencadeia uma catarse que retroalimenta a retomada da autonomia e o resgate das identidades fragmentadas pela violência do crime e do cárcere”, assinala ela.
Dados do Centro de Apoio Operacional da Segurança Pública (Ceosp) do MPBA, levantados no último ano, revelam que 57,8% da população carcerária no estado possuía apenas o ensino fundamental I incompleto, enquanto 4,8% sequer eram alfabetizados. Esse cenário evidencia a importância de iniciativas como o ‘Projeto Relere’ para promover acesso à educação e oportunidades reais de reinserção social. Segundo informações do Grupo de Atuação Especial de Execução Penal (Gaep) do MPBA, das 28 unidades que compõem o sistema prisional baiano, 24 oferecem o benefício da remição pela leitura. Atualmente, o grupo participa de um plano de trabalho conjunto com a Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) para o enfrentamento da superlotação carcerária e uma das frentes de atuação é a abertura de vagas por meio da ressocialização, o que inclui iniciativas para padronizar os fluxos e procedimentos relacionados à remição de pena por leitura, bem como para implementar seu efetivo monitoramento.
As pessoas privadas de liberdade têm direito à certificação dos estudos por meio de exames. Nacionalmente, essa demanda é atendida pelo Encceja. No estado, os exames são aplicados pelas Comissões Permanentes de Avaliação (CPA), da Secretaria da Educação do Estado (SEC), que integram uma unidade certificadora responsável por aplicar provas mensalmente e validar os exames do Encceja. O investimento em educação em todos os níveis e práticas sociais educativas para remição de pena são consideradas medidas de reparação pelo estado de coisas inconstitucional (ECI) das prisões, conforme o Plano Pena Justa do CNJ. A iniciativa busca resolver o ECI reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, que apontou a violação massiva e estrutural de direitos fundamentais dos presos.
Foto: Nucom Seap




